Anatomia de Uma Epidemia

Anatomia de Uma Epidemia  por Robert Whitaker

Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental, escrito pelo premiado jornalista americano Robert Whitaker, é um livro que trafega no contrafluxo de uma das correntes mais fortes da pós-modernidade, pois questiona a medicalização da vida cotidiana.

Robert Whitaker, é um reconhecido jornalista científico, especializado em temas médicos. No livro, apresenta-nos não só estatísticas, mas a história de um enigma na medicina. Intrigado em solucionar um quebra-cabeça, que pode ser explicitado de forma sucinta como a falta de encaixe entre as seguintes peças: o anúncio do grande avanço científico na psiquiatria nos últimos cinquenta anos e a epidemia oculta de doentes mentais inválidos nos Estados Unidos, desde a “descoberta” dos medicamentos psicotrópicos.

“Como sociedade, passamos a aceitar os grandes progressos no tratamento das doenças mentais anunciados por jornais, revistas e livros, advindos de cientistas descobrindo causas biológicas dos distúrbios mentais e empresas farmacológicas desenvolvendo diversos remédios eficazes”.

Apesar do poderoso consenso na aceitação de que “drogas psiquiátricas funcionam e ajudam as pessoas a levarem uma vida relativamente normal”, ao mesmo tempo, o número de pessoas com invalidez por doença mental teve um crescimento drástico e nas últimas duas décadas, período de explosão nas receitas de medicamentos psiquiátricos, o número de adultos e crianças incapacitados subiu vertiginosamente. Chega-se assim “a uma pergunta óbvia, ainda que de natureza herege: poderia o paradigma de atendimento medicamentoso, de alguma forma imprevista, estar alimentando essa praga dos tempos modernos?”

Nos últimos vinte e cinco anos, a psiquiatria por meio de seu Manual Diagnóstico e Estatístico (DSM) traçou uma fronteira entre o que é “normal” e o que não é. “Nossa compreensão social da mente humana, antes provinda de uma mescla de fontes – literatura, filosofia, textos religiosos e investigações científicas – é hoje filtrada apenas pelo DSM”. As “histórias” contadas sobre os desequilíbrios neuroquímicos reformularam a compreensão do funcionamento mental e questionaram concepções do “livre-arbítrio”. Nas palavras do autor: “será que somos realmente prisioneiros de nossos neurotransmissores? E mais importante, nossas crianças são as primeiras da história humana a crescerem sobre a sombra constante da “doença mental”. Não faz muito tempo, os vadios, os gaiatos, os valentões, os cê-dê-efes, os tímidos, os xodós dos professores e um sem-número de outros tipos reconhecíveis enchiam os pátios das escolas e todos eram considerados mais ou menos normais. Ninguém sabia o que esperar dessas crianças quando ficassem adultas, mas isso fazia parte da gloriosa incerteza da vida – na comemoração de vinte anos de formatura do curso médio, a menina tímida poderia aparecer como uma atriz de sucesso. Hoje, no entanto, as crianças diagnosticadas com transtornos mentais ajudam a povoar o pátio estudantil. São crianças informadas de que há algo errado com seu cérebro e de que talvez tenham que tomar remédios psiquiátricos pelo resto de suas vidas, assim como o ‘diabético toma insulina’ (afirmação mais usada para justificar e convencer da necessidade do uso contínuo)”.

São muito impressionantes os capítulos referentes à epidemia disseminada entre as crianças e adolescentes, que têm sido medicados já a partir de dois, três anos de idade. Em seguimentos de seis anos, as crianças medicadas apresentam uma inibição do crescimento e uma lista longa de outros efeitos adversos físicos e psíquicos bastante graves. A história estudada pelo autor por meio dos periódicos científicos “revela que a epidemia cresceu pari passu com a prescrição de estimulantes e antidepressivos para crianças”. Whitaker se pergunta com grande preocupação: “o que estamos fazendo com nossas crianças, nosso futuro como seres humanos?”

No caso das crianças, a escolha de rotular e medicar sem a consciência dos efeitos a longo prazo, recai sobre os pais, professores e cuidadores, tornando a situação ainda mais grave, pois de modo geral, essas drogas facilitam o manejo das crianças em sala de aula ou de estar, mas, com alto custo no âmbito das funções cognitivas complexas ou mesmo desempenho acadêmico, com efeitos insalubres vários e sem encontrar nenhum benefício real segundo os dados de pesquisas até 2008 – um pouco antes da publicação do livro.

Além disso, de forma rigorosa, Whitaker “desvela a falsidade da hipótese “científica” que preside a teoria e o uso dos psicofármacos”. O autor documenta a história de “uma sociedade desencaminhada e traída”, trazendo à tona um enredo de outra natureza, na qual “as causas biológicas das doenças mentais continuam por serem descobertas e os medicamentos psiquiátricos vêm ‘alimentando’ a epidemia de doenças mentais incapacitantes”. Ainda, ao colocar por terra a presunção do desequilíbrio bioquímico que sustenta o uso desses medicamentos, analisa exaustivamente as investigações truncadas utilizadas para a aprovação e comercialização dessas drogas, que atuam criando um funcionamento anormal do cérebro. Ao mesmo tempo, com base no testemunho de uma série de pessoas tratadas por longo prazo, ainda questiona a eficácia das formas de tratamento hegemônicas.

Whitaker desconstrói “o mito de que as drogas psiquiátricas iniciaram um avanço científico extraordinário e que por conta desse avanço nas últimas décadas, a sociedade contaria, cada vez mais, com diagnósticos psiquiátricos precisos, com protocolos de intervenções objetivas e confiáveis, capazes de identificar problemas – que até então, ou não eram percebidos ou eram abordados de forma não científica – os quais (protocolos) deveriam orientar o tratamento adequado”.

Esse mito foi abordado recapitulando a história dos modos “como a psiquiatria tem tornado problemas usuais, comuns ao cotidiano da maioria das pessoas em “transtornos mentais”. Na sua desconstrução Whitaker adota a lógica própria que supostamente sustenta o discurso psiquiátrico: a das evidências científicas”.

A cada página lida somos surpreendidos com a constatação de que faltam justamente evidências científicas para a construção das categorias de diagnósticos, por exemplo. Nas sucessivas revisões dos DSM, dizem seus formuladores, que a causa dos transtornos mentais são essencialmente biológicas, sendo por isso mesmo, a medicação psiquiátrica essencial. Mas, “o que historicamente a psiquiatria tem feito é primeiro nomear transtornos para depois buscar as causas biológicas”.

A construção desses manuais está fundamentada na lógica de que se “um número importante de clínicos sente que determinada categoria de diagnóstico é importante em seu trabalho, então, ela merece estar no manual”. As versões do DSM têm como questão saber o quanto de consenso há para se reconhecer e incluir um transtorno mental qualquer. Porém, para a ciência, acordo não necessariamente significa “verdade científica”.

Na busca de Whitaker, com o intuito de solucionar o enigma que o intriga, o que “não faltam são evidências científicas para se entender esse fenômeno, tradicionalmente conhecido como iatrogenia”. São evidências interculturais investigadas pela própria Organização Mundial de Saúde (OMS), com estudos clássicos de follow-up; são experimentos em animais utilizando drogas psiquiátricas; são estudos prospectivos longitudinais acompanhando pessoas, entre pacientes diagnosticados que foram tratados ou não com medicamentos psiquiátricos por dois, cinco, dez, quinze, vinte e vinte e cinco anos. São pesquisas com imagens de ressonâncias magnéticas que demonstram a redução de lobos frontais ou outras estruturas neurais ao longo do tempo de tratamento com tais drogas; enfim, muitas revelações chocantes. E infelizmente, “as provas científicas simplesmente não parecem afetar os hábitos de muitos médicos em matéria de prescrições”.

Por fim, na quinta e última parte do livro “Soluções”, o autor, tentando tornar a conversa fecunda, apresenta projetos de reforma que poderiam contribuir para a construção de um futuro diferente.

Apesar das surpresas e desafios que o leitor vai encontrando na sequência da leitura, espero que possamos tê-la como um instrumento de reflexão, com o objetivo de poder melhorar o cuidado dirigido a todas as pessoas em sofrimento psíquico.

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